segunda-feira, 24 de março de 2008

As portas da percepção

The Doors of Perception (As portas da percepção, em português) é um livro de 1954, escrito por Aldous Huxley, onde o autor pormenoriza as suas experiências alucinatórias quando tomou mescalina. O título provém de uma citação de William Blake:

"If the doors of perception were cleansed everything would appear to man as it is, infinite."
"Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo apareceria para o homem tal como é: infinito."

Baseado nesta citação, Huxley assume que o cérebro humano filtra a realidade de modo a não permitir a passagem de todas as impressões e imagens que existem efectivamente. Se isso acontecesse, o processamento de tal quantidade de informação seria simplesmente insuportável. De acordo com esta visão das coisas, as drogas poderiam reduzir esse processo de filtragem, ou "abrir as portas da percepção", como é dito metaforicamente. Com o intuito de verificar esta teoria, Huxley começou a tomar mescalina e a descrever os seus pensamentos e sentimentos sob o efeito da droga. A sua principal impressão será a de que os objetos do nosso cotidiano perdem a sua funcionalidade, passando a existir "por si mesmos". O espaço e as dimensões tornam-se irrelevantes, parecendo que a percepção se alarga de uma forma espantosa e mesmo humilhante já que o ser humano se apercebe da sua incapacidade para fazer face a tantas impressões.

Além de drogas como a mescalina, o LSD, a psilocibina, etc, outras formas citadas para se abrir as portas da percepção seriam:

Huxley explica que uma das razões porque as portas da percepção normalmente ficam semi-cerradas seria para a própria proteção do indivíduo, que de outra forma se distrairia com a enxurrada de estímulos desnecessários para a sobrevivência.

Esse livro foi a fonte de inspiração para o nome da banda The Doors, que por sinal apresenta uma obra com características semelhantes ao do livro, quebra de paradigmas, oposição a normas e costumes vigentes e uso de drogas.

NOTAS SOBRE A POESIA DE WILLIAM BLAKE

Podemos dizer, sem cometer um grande exagero, que William Blake foi um poeta que influenciou a popular de nosso século como pouquíssimos outros. Os hippies, talvez simplesmente por influência das letras de Jim Morrison, viram nele um defensor de seus ideais de amor livre. Alguns músicos do pós-punk exploraram bastante o teor fortemente libertário de alguns textos do autor. A sub-cultura gótica sempre mostrou grande apreciação por algo como um satanismo que vê na obra do autor, bem como pelas imagens muitas vezes sombrias e carregadas de um grande teor mitológico que vemos por toda parte ao longo da obra do poeta. Muitos headbangers se renderam a ele depois de ouvir o álbum The Chemical Wedding, de Bruce Dickinson. Isso, evidentemente, para ficar em apenas alguns exemplos.

Existem duas características da obra de Blake que talvez já tenham ficado evidentes no parágrafo anterior, mesmo que ainda não tenhamos dito nada sobre a sua obra em si, apenas sobre sua recepção em vários, por assim dizer, círculos. Uma delas é a imensa variedade de leituras que poemas como The Marriage of Heaven and Hell e The Book of Thel ao menos parecem permitir. A outra é o fato de Blake ter se tornado, ao menos no que diz respeito ao grande público, um autor admirado mais por conta de suas idéias do que propriamente por conta dos aspectos formais de sua obra. Shakespeare, por exemplo, é admirado até hoje, com toda a justiça, não por ter defendido isto ou aquilo, mas simplesmente pela beleza de suas peças. O mesmo poderia ser dito também, digamos, de Ezra Pound ou de Charles Dickens. Ainda que esses três autores tenham certamente captado em suas obras aspectos cruciais do que poderíamos chamar a natureza humana, conquistaram suas cadeiras cativas na história da literatura universal pela maneira como pintaram situações e sentimentos, não como defensores deste ou daquele modo de vida. Talvez isso se deva ao fato de qualquer, por assim dizer, ideologia presente nas obras desses autores não aparecer senão de maneira velada. Blake, por outro lado, era bastante contundente nas afirmações de cunho moral e religioso que fazia em seus escritos. Parece ter tido, além disso, uma mensagem bastante poderosa para oferecer. Talvez seja por isso que, apesar de usar recursos poéticos bastante interessantes e indubitavelmente inovadores para seu tempo, seja conhecido pelo grande público principalmente por conta do conteúdo “moral” de seus textos.

É interessante notar que, ainda que Blake tenha vários textos bastante conhecidos, como as famosas Songs of Innocence e Songs of Experience, a “obra de referência” para aqueles que vêem em no poeta o defensor de algo como um estilo de vida é principalmente The Marriage of Heaven and Hell. Isso faz que com, por vezes, o leitor tenha uma idéia um tanto parcial sobre o que Blake pretende ou não dizer. Faremos, a seguir, uma tentativa breve e bastante introdutória de captar alguns dos aspectos, por assim dizer, ideológicos que podem ser encontrados na obra do autor, tendo por base um escopo mais amplo de textos. Deixaremos de lado as relações bastante complexas de Blake com a tradição cristã, já que seria basicamente impossível tratar delas em um texto do porte do deste. De qualquer maneira, tendo em mente o objetivo que propusemos, vejamos, agora, os primeiros versos de Auguries of Innocence:

“To see a World in a Grain of Sand
[Ver o Mundo em um Grão de Areia]
And a Heaven in a Wild Flower
[E o Paraíso em uma Flor Selvagem]
Hold Infinity in the palm of your hand
[Conter a Infinidade na palma de sua mão]
And Eternity in an hour”
[E a Eternidade em uma hora]

Não se trata apenas de uma bela introdução para as inúmeras relações que serão apresentadas posteriormente no poema. Está presente aí um tema que parece recorrente na poesia de Blake, a saber, a natureza como uma entidade orgânica, cujas partes guardam todas uma relação muito íntima umas com as outras. No fim das contas, parece que é essa natureza, esse todo que importa no fim das contas. Isso pode ser observado, também, em algumas passagens de The Marriage of Heaven and Hell. Um exemplo que pode parecer banal, mas que é bastante apropriado para ilustrar esse ponto é o “provérbio do inferno” que diz: “The cut worm forgives the plough” [O verme que é cortado perdoa o arado]. Um outro exemplo, esse um tanto mais forte, pode ser encontrado em The Book of Thel:

“O beauty of the vales of Har, we live not for ourselves,
[Ó, beleza dos vales de Har, nós não vivemos sozinhos]
Thou seest me the meanest thing, and so I am indeed;
[Tu me vês como a coisa mais insignificante, e isso eu sou de fato]
My bosom of itself is cold, and of itself is dark,
[Meu âmago é por si mesmo frio, e, por si mesmo, escuro]

But he that loves the lowly. Pours his oil upon my head.”
[Mas aquele que ama os pequenos despeja seu óleo sobre minha cabeça]

Essa natureza, em que estão inseridos também os homens, é claro, é apresentada por Blake como uma entidade vibrante, repleta de vida e de beleza. Isso é perceptível, por exemplo, ao longo de todas as descrições referentes ao vale de Har em The Book of Thel. Além disso, a pujança e o aspecto vivaz são características de todos os personagens que desenpenham papéis heróicos nos poemas comumente chamados de “Livros Proféticos”.

Isso não quer dizer que não esteja presente nos poemas de Blake a idéia de que alguns dos seres que compõem essa natureza não sejam mais nobres ou dignos de nota. Um bom exemplo disso é o poema The Tyger. Além disso, temos as já mencionadas características de personagens como Los e outros, por assim dizer, “heróis” dos “Livros Proféticos”. Em The Marriage of Heaven and Hell, ainda, encontramos o seguinte provérbio: “When thou seest na eagle, thou seest a work of Genius: Lift up thy head” [Quando vês uma águia, vês uma obra de Gênio. Ergue tua cabeça]. Assim, podemos dizer que Blake busca conciliar a aceitação de que todos os seres exercem papéis importantes para o todo com a exaltação de qualidades como grandeza de espírito e força de caráter. Mais ainda, cada ser deve agir segundo as qualidades que o caracterizam. De certa maneira, alguns parecem ter mesmo privilégios em relação ao demais. Isso, desnecessário dizer, seria decorrente da própria maneira como a natureza está organizada.

As idéias que Blake defende em seus poemas de cunho mais político podem ser consideradas, ao menos de certa maneira, uma extensão das que expusemos brevemente nos parágrafos anteriores. Mesmo a leitura mais casual de The French Revolution, por exemplo, revela o apreço do autor por caracteres que poderíamos chamar de heróicos. Além disso, a repulsa pelo jugo do tirano aparece como algo que, mais do que decorrente apenas de um sentimento de humanidade, pode ser justificado pelas idéias desenvolvidas por Blake acerca de temas mais amplos. Talvez até seja possível extender o provérbio do inferno segundo o qual “One law for the Lion and the Ox is oppresion” [Uma só lei para o leão e para o boi é opressão], empregando-o para sustentar a idéia de que, no caso dos homens, não haveria necessariamente uma distinção de natureza para justificar o jugo de uns sobre outros. Isso é bastante consistente, aliás, com a apologia de vários tipos de liberdade ao longo dos “livros proféticos” (inclusive, por exemplo, America: A Prophecy, que pode certamente ser lido como um texto político, ainda que não apenas um texto político). Parece, também, uma justificativa consistente para a recusa bastante veemente do poeta ao banho de sangue em que a Revolução Francesa se transformou posteriormente. Se a igualdade entre os homens opõe-se diretamente ao jugo, opõe-se também, é claro, a massacres entre iguais e à violência gratuita. O homem deve ser, como esperamos que já tenha ficado claro, livre, forte, ousado. Deve, além disso, estar consciente de seu lugar em uma natureza organizada de maneira firme e consistente.

Essas qualidades que Blake exalta parecem transparecer, inclusive, na própria imagem que o autor faz da natureza da imaginação (e, talvez, por extensão, da atividade do poeta). Nos primeiros versos de The Ghost of Abel, lemos:

“Nature has no Outline: but Imagination has. Nature has no Tune: but Imagination as! Nature has no Supernatural & dissolves: Imagination is Eternity.”

[A Natureza não tem Contorno: mas a Imaginação tem. A Natureza não tem Tom: mas a Imaginação tem! A Natureza não tem Sobrenatural, e se dissolve: A Imaginação é Eternidade.]

Seria precipitado ver, aí, algo como a negação de tantas belas passagens em favor da natureza que Blake se esmera em construir ao longo de boa parte de sua obra. Observemos que, ao fim de Jerusalém, o último dos grandes “livros proféticos”, Los, que representa precisamente a imaginação criadora, finalmente triunfa sobre Urizen, símbolo da razão que aprisiona. Vemos que Blake, então, certamente influenciado por ideais românticos, faz a defesa do potencial criador da imaginação. Não seria exagero dizer que a prática das virtudes que Blake recomenda, quando realizada pelo poeta que põe em exercício a sua imaginação (entendida, aqui, como criadora), aproxima o homem da divindade. No fim das contas, talvez Bruce Dickinson, apesar das simplificações por vezes bastante grosseiras que cometeu em seu álbum, tenha acertado em um ponto crucial: casamento químico era como alguns alquimistas chamavam a transformação do chumbo em ouro. Mais do que apenas a transformação de um material em outro, ele simbolizava a união do homem com a divindade. Parece, então, um título bastante apropriado para um trabalho que tem por tema recorrente, além da alquimia, a obra de um poeta que defendeu que poderíamos quase ser como deuses.

PS: as traduções das passagens de Blake é nossa. Desculpamo-nos humildemente por qualquer injustiça que possamos ter cometido contra o estilo do poeta.